Oitocentos anos de prática com parlamentarismo levaram o sistema de governo na Inglaterra a aperfeiçoar mecanismos para expurgar políticos malfeitores. Se cometem crimes, acabam sob julgamento em tribunais comuns, porque parlamentar britânico hoje - inclusive o primeiro-ministro - não tem imunidade na Justiça, nem foro privilegiado para crimes comuns. São imunes apenas na liberdade de expressão pelo que digam no plenário, não pelo que façam de ilegal no lado de fora.
No Reino Unido, apesar dos 800 anos da história parlamentar, não há uma Constituição escrita. Em entrevista para o Sem Fronteiras, da GloboNews, Tony Travers, da London School of Economics, explica que o primeiro-ministro na Grã-Bretanha só continua no poder enquanto a maioria do seu próprio partido o enxergar como líder. “Não há detalhes sobre como o governo ou o Parlamento devem agir. Isso é decido ao longo do tempo e desenvolvido especificamente para este fim de uma maneira orgânica. Então, mesmo um membro da Câmara dos Comuns ou dos Lordes corre o risco de ser deposto. No caso do Reino Unido, se um primeiro-ministro fizesse algo de fato grave, ou considerada inaceitável, os próprios membros do Parlamento perderiam a confiança nele e o forçariam a sair”, diz Tony.
Quem sentiu isso na pele foi o ex-deputado e escritor de best-sellers Jeffrey Archer, que caiu na justiça comum várias vezes, por corrupção, sem proteção parlamentar. Acabou condenado, em 2001, e cumpriu na prisão metade de uma pena de quatro anos.
O expurgo de deputados por irregularidades diversas começa dentro do Parlamento, com moções de censura por uma comissão de ética e suspensão de atividades pela liderança da casa. Podem ser suspensos por alguns dias, por falta de decoro, sem salário e sem direito de voto no plenário. Dependendo da gravidade da ofensa, o partido do político envolvido costuma exigir que ele ou ela renuncie. Mas não pode obrigá-los a deixar o posto. Mesmo o plenário como um todo não tem poder para expulsar da casa um deputado infrator, privilégio só concedido ao eleitorado, nas eleições seguintes. O partido dele, porém, pode retirar-lhe apoio, o que o torna ineficaz como parlamentar e assegura que não possa concorrer a novas eleições, pois não será selecionado pelo partido.
Tony diz que é muito difícil um político que passe por isso não renunciar. “Ele pode até continuar, mas o que vai acabar acontecendo é que haverá outra eleição em 5 anos. Nenhum partido o apoiaria e ele perderia a próxima eleição. Há também a questão de que as pessoas fazem pressão. A imprensa britânica é muito agressiva nestes casos. Qualquer um que cometa um crime e resolva continuar no Parlamento, ainda mais na Câmara dos Comuns, terá a vida desgraçada pela imprensa. Quem vai querer viver isso?”, questiona Tony.
O partido é tão forte no sistema parlamentar, que serve para tirar do posto até o líder maior, primeiro-ministro e chefe de governo. E pode fazer isso até sem que ao menos o líder tenha cometido crime ou séria impropriedade. Pode ser afastado por motivo político.
Ocorreu assim com Margaret Thatcher em 1990. O Partido Conservador concluiu que a liderança dela, impopular na ocasião, iria levar a uma derrota nas eleições seguintes. Os caciques, então, simplesmente destituíram Thatcher do comando supremo do partido e do governo. Escolheram John Major para o posto. Assim, sem nunca ter perdido uma eleição popular, Thatcher foi tirada do caminho pelo partido, que nela perdeu confiança.
De longe, a Rainha Elizabeth II contempla reviravoltas parlamentares desse gênero. Ela é chefe de estado, um cargo cerimonial que não lhe dá poderes para interferir no Parlamento. O último que tentou isso, o Rei Charles I, foi decapitado em 1649 e gerou uma guerra civil.
A soberania é do Parlamento que, se assim o quiser, pode até tirar a rainha do poder, dissolver a monarquia e instituir uma república. Improvável, mas legalmente possível.
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